“Dona Júlia tinha 63 anos quando foi
diagnosticada com câncer de colo de útero. Morreu em 6 meses. Pela mesma
situação passaram várias outras pessoas que tive oportunidade de conhecer. Umas
mais, outras menos. Na grande maioria das vezes, o medo, a dor, a fraqueza, o
olhar assustado de quem visita trava os sentimentos da pessoa que, nos seus momentos
finais, não consegue fluir o que vai dentro de si. Nessas horas, o olhar sempre
diz mais do que as palavras. Mas, de vez em quando, somos surpreendidos com
exemplos gigantescos de coragem, simplicidade e sabedoria de vida.
Sempre me perguntam por que faço isso quando
descobrem que visito pacientes terminais em hospitais. Entrar num hospital é
algo que muitos evitam, o cheiro característico do éter afasta os mais
corajosos, a apreensão em encontrar alguém que logo vai morrer, sem saber como
vai ser recebido e como as coisas irão transcorrer, é realmente angustiante e
assustador.
Sou um homem adulto, tenho emprego, tenho
família, tenho saúde, mas carrego uma angústia dentro de mim, uma angústia
advinda da insatisfação permanente e do desejo de ter mais do que tenho e ser
mais do que sou. Os seres humanos são assim, se angustiam por coisas
existenciais, por medos intrínsecos. Além disso, sou arrogante, me acho
importante e me levo a sério. Como pode alguém importante e que se leva a sério
não ser mais do que é e não ter mais do que tem? Daí a angústia. Daí a correria
desenfreada atrás de dinheiro, de brilho, de poder, de amigos, de movimento, de
vida.
Dona Júlia era a quinta filha de um total de
12 irmãos, três mortos logo após o nascimento. A mãe, pobre dona de casa, e o
pai, gasto trabalhador rural da região de Guatapará, não tinham condições de
criar seus filhos e, de modo doloroso, dona Júlia e seus irmãos mais novos
foram sendo espalhados pelo mundo, doados a quem os quisesse levar. Veio parar
em Ribeirão Preto, na casa de uma distinta senhora da Vila Tibério, aos sete
anos de idade, e cresceu trabalhando na cozinha e nas prendas domésticas,
dormindo num quartinho nos fundos do local. Os pais, nunca mais os viu. Dos
irmãos mais velhos não teve mais notícias e só sabia onde estavam dois dos mais
novos, que mais tarde viriam a morar com ela.
Há dez anos acompanho pessoas nessas condições
terminais de suas vidas, muitas vezes em situações dolorosas. Não faço por
culpa cristã, pela redenção da minha alma e, pasmem, nem mesmo por caridade.
Faço por mim, isto mesmo, por puro egoísmo. Vou lá conhecer histórias e ver de
perto o fim do ser humano para buscar em mim a humildade de que tanto necessito.
Não gosto de ser arrogante, não gosto de me achar importante e não gosto de me
angustiar por não ser o que acredito que merecesse ser. Não, não gosto. Enfrento
meus medos e vou lá aprender com os seres humanos a ser mais humano, a doar e
receber dignidade e tentar encontrar a humildade.
Seu Pedro tinha 73 anos quando foi diagnosticado
com câncer de pulmão. Morreu em 4 meses. Conquistou as mãos calejadas, a pele
grossa, o olhar duro e a profunda resiliência na lida dura da roça, onde viveu
por 40 anos, quando então se tornou pedreiro na cidade de Jaboticabal.
Sustentou uma família de 7 filhos sem nunca reclamar de nada. Acordava antes da
luz do Sol e trabalhava o dia todo sem tempo para angústias existenciais ou
perguntas sobre o que poderia ser se não tivesse sido. Encarava todas as
pessoas, das mais pobres às mais ricas, da mesma maneira simples e direta. Seu
Pedro era ele mesmo, do jeito que era e não tinha espaço em sua agenda para
preocupações existenciais ou sutilezas humanas.
Eu, diferentemente dele, sempre reclamo,
sempre me pego insatisfeito com a minha existência e sempre me surpreendo me
comparando às pessoas, invariavelmente me achando melhor do que elas. Uma amiga,
da qual gosto muito mais do que o tempo que a conheço permitiria, sempre me
critica por isso. Não entende a minha angústia, como se não tivesse as dela,
pois sei que as tem. Mas, ao contrário de mim, enfrenta a vida de coração
aberto e com gargalhadas. Ela não sabe, mas esse modo de ser me irrita às
vezes. Porém, o que sinto mesmo é inveja. Queria ser como ela. Queria ser como alguns que conseguem seguir a vida sem competir, nem consigo mesmo, nem com outros. Que conseguem seguir a vida sem deslumbramento com dinheiro, com vida de luxo e querendo só estar por perto de "gente bonita". Não, queria mesmo era ser humilde e feliz com as coisas simples da vida.
Dona Júlia casou-se com um bombeiro, saiu da
casa da distinta senhora já adulta, constituiu sua própria família, descobriu e
visitou o túmulo dos parentes em Guatapará e São Carlos, nunca leu um livro na
vida, nunca questionou suas crenças, acendeu uma vela para são Benedito, ao
lado de uma xícara de café, por toda a vida. Seus conselhos eram todos
práticos, sem profundidades, ensinava a cozinhar, truques para fazer doces,
dicas de costura, dava bronca nos meninos, alinhava suas roupas, cuidava dos
seus netos, cuidava do marido. No último dia de vida, nos braços de sua filha,
não demonstrou medo nem angústia. Dona Júlia viveu, simplesmente viveu e, ao
ser perguntada se queria alguma coisa, nos momentos finais, disse, sem
cerimônia, que sentia falta de um bolo de fubá com café. Eu não consigo ver
maior exemplo de simplicidade e entendimento da vida.
Num dos encontros que tive com seu Pedro,
confessou-me que estava feliz porque, com as economias, tinha conseguido
arrendar um sitiozinho onde plantava mandioca e milho. Ele que sempre trabalhou
para os outros, agora plantava para ele. Mas estava preocupado, porque
internado no hospital, não tinha como cuidar da pequena roça. Se não fosse a
dor que sentia, que, segundo ele, fazia parecer que tudo doía, seu corpo, a
cama, o lençol, a enfermeira, eu, enfim, a dor era tanta que ele não distinguia
onde doía, certamente se levantaria dali para cuidar da plantação. Nem sentiu
quando a enfermeira lhe aplicou uma injeção de morfina. Em cinco minutos
dormia, tranquilo, sem dor. Vendo aquele exemplar de homem que eu certamente
sonharia ser ( forte, prático, decidido, sem frescura, sem medo) ser vencido
pela dor e ressonar como uma criança, chorei, um choro forte, explosivo. Tive
que sair do quarto e buscar um local isolado para chorar, soluçante, as minhas
angústias. Uma catarse, um aprendizado.
Pobre exemplar de macaco eu sou. Angustiado, em
conflito com o nada. Trocaria sem pestanejar a minha vida importante, os meus
questionamentos profundos, pela simplicidade, praticidade e sabedoria da dona
Júlia e do seu Pedro. Como um bom ser humano, morador de um cantinho num
universo infinito, tenho um universo particular dentro de mim. O que muitas
vezes esqueço é que o meu universo não é o único e nem o maior. Quanta
arrogância e quanto egoísmo achar que eu sou mais importante que alguém e me
revoltar com uma condição de vida que julgo indevida, ao invés de simplesmente
viver. Por isso, continuo fazendo o que faço, em busca da minha humildade, em
busca de calar em mim a angústia interminável e, enfim, gostar de mim, das
outras pessoas e de tudo em torno com a grandeza de alma e simplicidade de uma
dona Júlia, que ao invés de sonhar com riqueza, de lamentar nunca ter estado em
Paris, de não ter bebido um vinho caríssimo, de não ter vestido roupas de
marca, de não ter sido algo importante perante os outros, pediu, na hora derradeira, descaradamente, sem nenhum pudor, um cafezinho com bolo de fubá.”
PS: este texto é baseado na vida de
um grande amigo que, como eu, é um eterno angustiado em busca da humildade. Atua na tanatologia (morte digna para pacientes terminais). Assim como aqueles que trabalham com crianças vitimizadas, pessoas no limite da miséria, portadores de deficiência, enfim, são cidadãos que doam o que têm para aqueles que nada têm. Ponto final.
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