EU SOU CONTRA O ASSASSINATO DE BEBÊS!
Outro dia vi no facebook o seguinte texto: " Pensem antes de responder. Se você conhecesse uma mulher grávida que já tivesse oito filhos, sendo dois surdos, dois cegos e dois retardados. E a mulher ainda por cima contraiu sífilis. Se ela ficasse grávida novamente você recomendaria que ela fizesse um aborto? Leia a próxima pergunta antes de responder esta. Está na hora de eleger um novo líder mundial e você tem direito a voto. Antes veja algumas informações sobre os três candidatos: o primeiro está ligado a políticos corruptos, consulta astrólogos e tem duas amantes. O segundo, já foi demitido de dois empregos, costuma dormir até o meio-dia e usou drogas na universidade. O terceiro é vegetariano, herói de guerra condecorado e nunca teve uma relação extra-conjugal. Qual candidato você escolheria? Bom, se você escolheu o terceiro candidato, saiba que o primeiro é Roosevelt, o segundo é Churchil e o terceiro é Hittler. Ah, e se você recomenda o aborto, saiba que matou Beethoven."
É um texto ridículo, daqueles que deletamos ao ler as primeiras linhas. Porém, o escolhi como exemplo para poder colocar a minha colher na questão do aborto.
Mas, em primeiro lugar, é preciso dizer que há outras questões, além do aborto, contidas no texto citado, como o conservadorismo reacionário, ao julgar, subliminarmente, que todos escolheriam o candidato "nerd" que não joga água fora da bacia e, aí, entrar com um juízo de valor rastaquera afirmando que "não devemos julgar ninguém", blábláblá. Este assunto talvez um dia mereça uma reflexão aqui, mas por enquanto vou me ater na "falácia Beetoven".
Essa falácia é famosa e também mentirosa. Beetoven era o filho mais velho e sua mãe nunca teve sífilis. Mas ela serve bastante bem para a pregação religiosa de teistas e para o apelo ao emocional no debate sobre o aborto.
O mote principal dessa falácia é a privação da vida e de seu "potencial futuro". Foi criada por cristãos católicos anti-abortistas e é caracterizada pelo "declive escorregadio": para afirmar que uma setença é viável, se recorre à consequências estapafúrdias ou apelativas. Todo o discurso anti-abortista que se vê ou se ouve tem como base o apelo ao emocional e o declive escorregadio. Mostram cenas de bebês mortos, sangue, mães chorando, e a frase clássica: aborto é assassinar bebês inocentes. As cenas chocam, são asquerosas. Eu também sou contra o assassinato de bebês inocentes e acho que abortar um feto já desenvolvido, sem que este coloque em risco a vida da mãe ou seja um anencéfalo, é um ato repugnante e criminoso. Um feto desenvolvido, mesmo no útero da mãe, para mim, já é um cidadão que goza de direitos. E este certamente será um assunto a ser regulamentado na instância máxima de nossa justiça.
Mas aborto e infanticídio são coisas distintas. Aborto é interrupção da gestação em seu estado inicial (defende-se que seja até a 12a semana, onde o que há é um aglomerado amorfo de células chamado de mórula). Este modo de aborto deveria ser descriminalizado e tratado como questão de saúde pública.
Ninguém defende que o aborto seja obrigatório. Opiniões racionais sobre esse assunto defendem que seja descriminalizado e que seja um direito de escolha da mulher (regulamentado por lei). Abortar é sempre um ato complexo e precisa ser tratado como questão social e de saúde, como já foi dito. Acesso aos hospitais e ao atendimento psicológico devem ser disponibilizados à todas as mulheres, como também toda a tecnologia disponível.
Acontece que o debate sobre o aborto é deturpado pelos dogmas religiosos. Não existe nenhum argumento contrário ao aborto de uma mórula de até 12 semanas de gestação que não seja religioso, afinal, "a alma se funde na matéria no ato da concepção", segundo o dogma católico. E todos, repito, todos com apelos emocionais falaciosos, ou seja, bebês ensanguentados. O que se viu na última campanha presidencial de 2010 já é o suficiente para que todos entendam do que eu estou falando.
O Estado é, na minha opinião e apesar dos pesares capitalistas, uma das maiores invenções da humanidade. Antes de sua existência, a humanidade era muito pior, muito mais violenta, bem mais anti-ética, controlada pelo misticismo, pela superstição, pelos dogmas e pela mistura arcaica entre Igreja e monarcas. Muitos dos opositores ferrenhos anti-aborto são da linhagem cristã que adora sonhar com a construção de estados teocráticos (existem alguns no mundo de hoje, procurem saber como eles funcionam, ou procurem saber como pensam os fundamentalistas cristãos de origem estadunidense).
O Estado laico deve ser extremamente democrático, a opinião de todos é válida, inclusive a dos teístas e a dos cristãos mais reacionários, porque isto é necessário para que as mudanças sejam feitas de modo pensado e no tempo certo. Mas as decisões de Estado devem ser tomadas à luz da razão, do debate racional democrático, das condições dadas pelo avanço social do momento e devem ser regulamentadas por leis. A sociedade precisa avançar muito ainda em termos de direitos civis. Mudanças de padrões morais e de paradígmas não são necessariamente ruins, nem "diabólicas", seja lá o que isso signifique. Num Estado laico, os padrões morais avançam juntamente com a sociedade, numa teocracia isto nunca ocorre, vide temas como escravidão, divórcio, voto feminino, liberdade para outras religiões, união de pessoas do mesmo sexo, bebês de proveta, células tronco etc. As verdades cristãs são verdades absolutas e indiscutíveis (por vezes radicalmente fundamentadas nos textos judaicos ou nos textos greco-judaicos-cristãos) e, portanto, devem pertencer aos seus seguidores. O Estado deve se pautar unica e somente pela lógica científica.
Logo, a manutenção de um avanço social e econômico, o combate à miséria, a geração de emprego, educação, saúde pública de qualidade, políticas públicas de prevenção e descriminalização do aborto são ações muito mais importantes para a sociedade do que a pregação religiosa seja de que matriz for.
Ricos abortam em clínicas de alto padrão, enquanto que pobres abortam em lugares chamados de "clínicas". Todo ano, o país gasta cerca de 40 milhões de reais para tratar no SUS as vítimas de clínicas clandestinas de beira de esquina (segundo fontes do Ministério da Saúde e da Federação Internacional de Planejamento Familiar). Isto precisa acabar. Ponto final.